Em 1974, ouvi de um violeiro cego a surpreendente história de um menino cujos pai e irmão haviam sido assassinados. A mãe assustada e com medo de perder seu último, e agora único, filho levou-o ainda criança a um terreiro de umbanda para “fechar o corpo”. O menino cresceu sob a proteção de Ogum, entidade que representa a guerra. Crescido, o rapaz se envolveu com o crime e com a mulher do chefe do bando que mandou matá-lo. As balas atravessaram o seu corpo, porém, o jovem de corpo fechado caiu como morto numa piscina e, em um passe de mágica, ressuscitou e sai da água para viver a sua vida fora do crime.
A história é narrada no belíssimo filme de Nelson Pereira dos Santos, Amuleto de Ogum. De lá para cá, pouco se falou em corpo fechado e terreiro de umbanda. Há uma nova configuração religiosa na cidade do Rio de Janeiro. O protestantismo, o neopentecostalismo e outras denominações evangélicas invadiram a cidade e o País com nova forma de lidar com o mundo dos espíritos, substituindo as entidades que consideram diabólicas por Jesus.
Até agora essa mudança parecia irreversível e há quem diga que os traficantes mais perigosos hoje em dia são “de Jesus”. Ouvem-se casos de bandidos que fecham terreiros nos morros e nas comunidades invadindo casas de santo e expulsando os pais e as mães-de-santo da vizinhança.
Mas eis que no sábado, 8 de agosto, fomos surpreendidos pela notícia de que um dos mais procurados traficantes do Rio de Janeiro, Celso Pinheiro Pimenta, codinominado Playboy, fora morto quando se dirigia a um terreiro para fazer o ritual do “fechamento do corpo”. Antes, porém, o amor à namorada de 14 anos falou mais forte e ele passou por sua casa, não indo direto ao encontro da mãe-de-santo. Foi surpreendido pela polícia que o seguia de forma inteligente há um mês. O traficante de 33 anos estava protegido por quatro seguranças que fugiram quando a polícia se aproximou e Playboy foi alvejado por um tiro no peito e outro na perna.
Playboy era de família de classe média. Segundo o noticiário, o traficante era também assaltante e assassino perverso. Foi entrevistado pela revista “Veja” e também por seu amigo José Júnior – hoje fora do tráfico – coordenador do AfroReggae, enquanto estava foragido da penitenciária onde cumpria pena.
Segundo dizem as reportagens, José Júnior estava tentando uma rendição do traficante e chefe de um dos maiores bandos de assaltantes de carga no estado do Rio de Janeiro. Essas entrevistas e a forma como foram feitas mostram as relações perigosas entre o mundo do crime e a sociedade mais ampla.
A história do assaltante, traficante e assassino não é romântica como a história que o violeiro cego me contou em 1974 e, ao contrário, termina com a morte do bandido. Playboy era considerado um perigoso líder de uma facção criminosa e estava tentando retomar territórios já dominados pelas forças da lei. A polícia não só matou Playboy como prendeu mais seis traficantes procurados e rivais do bandido morto, chefes de facções que lutavam para retomar territórios e tocavam o terror nas regiões em que atuavam.
O menino Celso teve uma vida escolar típica de milhares de estudantes no País. Até o 4º ano do ensino fundamental parecia um aluno razoável. No quinto, foi reprovado pela primeira vez e repetiu o ano, segundo a ficha levantada pela reportagem do G1. Depois disso começou a via-crúcis por colégios onde seus pais o matriculavam na tentativa de ajudá-lo, até que Celso desistiu de estudar. Celso viveu até os 16 anos, antes de virar bandido, em Laranjeiras, bairro da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Nada em sua vida até então havia sido trágico. Nenhum grande trauma.
Pode-se dizer, quem sabe, que na escola forjou-se o herói pelo inverso, que ganhou fama e poder por não ter sido aceito pela instituição educacional. Bom em educação física, nunca o valorizaram por isso, e ganhou o status de garoto rebelde. Aos 16 anos Playboy já estava barbarizando em assaltos a residências e, certamente, liderando grupos com o mesmo perfil. Pena que a escola não tenha incentivado as aptidões do menino. Quem sabe se houvessem dado mais atenção às suas particularidades, em vez de traficante de alta periculosidade teríamos um campeão em alguma modalidade esportiva? Não há como saber.
No dia 8 de agosto, Playboy, o chefe da facção do morro da Pedreira foi morto. Talvez tenha sido o último bandido a acreditar em “corpo fechado”. Familiares dizem que foi assassinado. A polícia diz que reagiu e por isso foi baleado, falecendo a caminho do hospital. Fato é que o traficante depois de baleado não ressuscitou, como na história narrada pelo violeiro cego.
Fonte: G1