Em 15 de agosto, comemora-se o Dia de Nossa Senhora de Assunção, padroeira da Fortaleza e figura importante para a tradição religiosa cearense. Na mesma data, a umbanda celebra a Festa de Iemanjá, a mãe de todos os Orixás. A coincidência entre as festividades, no entanto, tem uma explicação. De acordo com o antropólogo e pesquisador do Laboratório de Antropologia e Imagem da Universidade Federal do Ceará (UFC), Jean dos Anjos, as tradições de Festa de Iemanjá no Brasil são, geralmente, ligadas às tradições de festas católicas que homenageiam Nossa Senhora.
Oficialmente, no Brasil, o dia de Iemanjá ocorre em 2 de fevereiro, mesma data de celebração da Festa de Iemanjá na cidade de Salvador. Lá, a comemoração está ligada ao Dia de Nossa Senhora das Candeias, também chamada da Candelária, da Luz e/ou da Purificação, complementa Jean dos Anjos. Em outras cidades brasileiras, o dia dedicado à orixá varia de acordo com a aparição de Nossa Senhora mais representativa.
“Em 15 de agosto, Iemanjá é celebrada em Fortaleza junto com Nossa Senhora da Assunção. A tradição da nossa festa foi trazida por Mãe Júlia Barbosa Condante do Rio de Janeiro, onde se celebra Iemanjá no dia de Nossa Senhora da Glória, padroeira daquela cidade”, detalha o antropólogo. ”Em 8 de dezembro, em Belém, no Recife e em outras cidades, Iemanjá é celebrada no mesmo dia de Nossa Senhora da Conceição”, salienta.
Em Belo Horizonte, Iemanjá também é celebrada no dia 15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Boa Viagem. A comemoração é realizada na Lagoa da Pampulha. Segundo Jean dos Anjos, os calendários provocam o imaginário brasileiro das grandes mães. “Nossa Senhora é mãe de Deus, e Iemanjá é mãe de todos os Orixás. Geralmente, nos dias das padroeiras, é feriado nas cidades e a comunidade umbandista aproveita para celebrar Iemanjá”, destaca.
As festas públicas de Iemanjá são preparadas pela comunidade de terreiro para que todo o público possa receber as bênçãos do Orixá. Na data, os umbandistas prestam a homenagem, agradecendo realizações e reforçando pedidos por meio da entrega de oferendas. Em 2020, a festa de Fortaleza completa 55 anos de existência e resistência do Povo de Santo que a organiza, pontua o antropólogo. Em 2017, ela tornou-se Patrimônio Cultural Imaterial de Fortaleza.
Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção
O culto à padroeira da cidade de Fortaleza, Nossa Senhora da Assunção, começa com a chegada da imagem, em 1622, às margens do Rio Ceará. Com a expulsão dos holandeses em 1654, o forte, denominado Schoonenborch, passou a se chamar “Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção”, conta o antropólogo Jean dos Anjos. Já em 2003, deu-se início a Caminhada com Maria, como parte da programação do Jubileu de 150 anos da Diocese do Ceará.
“O objetivo era rememorar as tradições cristãs de Fortaleza, que desde o século XVII tem registro da devoção à Nossa Senhora da Assunção”, destaca. O evento tornou-se patrimônio cultural imaterial do País desde 2015 e, este ano, será realizado virtualmente pela primeira vez, em razão da pandemia da Covid-19.
Tradição sincrética do catolicismo popular
O professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Christian Dennys, esclarece que as festividades de Iemanjá e Nossa Senhora da Assunção nasceram conjuntamente nos anos de 1950 – sem demarcação precisa por autores que se debruçaram nos eventos.
No entanto, enquanto a festa da padroeira de Fortaleza é paroquiana, a Festa de Iemanjá nasce de uma convenção de diferentes terreiros e associações de Umbanda, além de outras forças místicas da prática de Jurema, Catimbó, Terecô; e ainda do Candomblé. Esse último é mais conhecido por sua ascendência africana sem elementos indígenas, destaca o professor.
Segundo Christian, que é pesquisador de religião e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), essa convenção se transformou em um processo de sincretismo religioso incompleto. “Apesar de a Igreja Católica, na virada do século XXI, construir uma ligação com os festejos já tradicionais da Umbanda no litoral – Praias de Iracema e Futuro, principalmente -, acabou ignorando as marcas celebrativas dos grupos afros e desenhou uma procissão mariana desconectada e autônoma”, explica o professor.
Assim, as comemorações da Umbanda seriam associativas, vinda das bases populares dos praticantes do panteísmo espírita Umbandista, frisa Christian. Enquanto a tradição Arquidiocesana de homenagens à padroeira Nossa Senhora da Assunção só veio ganhar força recentemente. Primeiramente, em termos paroquianos. Depois, na tentativa de demonstrar a antiguidade da Fundação de Fortaleza no início do século XVII. E, por fim, na construção do Círio de Assunção, chamado de Caminhada com Maria.
Conforme Christian, um destaque importante entre as festividades é a devoção e homenagem ao protagonismo feminino, tanto no catolicismo quanto no panteísmo afro-ameríndio. “Esse destaque é pouco assinalado em termos simbólicos e espaciais; e, de forma paradoxal atrapalha, e muito, a explicação do fato de se observar o ‘apartheid’ sutil das duas Festas patrimoniais da Cidade de Fortaleza”, pontua.
Para o professor, se a Cidade fosse menos segregada e mais inclusiva, seria possível uma aliança entre as organizações religiosas, de forma a integrar os dois festejos. Sobretudo, na noite que antecede a data comemorativa. Porém, conforme o entendimento de Christian, ainda há discriminação entre organizadores e movimentos carismáticos católicos, que preferem manter a divisão de uma dupla homenagem.
“Quem sabe no tempo, no pós pandemia e no avanço de uma perspectiva patrimonial mais educativa e turística, o poder público leia a força dos dois festejos e ajude a conectá-los definitivamente na tradição da Cidade”, pondera o professor. Veja a programação religiosa da Festa de Iemanjá e Dia de Nossa Senhora da Assunção.
Fonte: O Povo